segunda-feira, 29 de junho de 2009

Kapeta, apenas garçom de um café


Texto publicado no caderno Persona, meu trabalho de conclusão de curso na faculdade de Jornalismo.

29 de junho de 2009

"O Kapeta está ali”, apontou a gerente do café Martinica, na 303 Norte. Não foi fácil reconhecer. O garçom, de quase 1,60m, estava sem os óculos de lentes coloridas que usa sempre, e com os cabelos longos presos em um coque. Parecia até um garçom qualquer. Recolhia os copos de uma mesa de um casal que acabara de comer, enquanto propunha ao homem: “Vem aí na outra segunda-feira, que a gente joga um xadrez”. Enquanto isso, a gerente batia impaciente a pastinha com a conta de outra mesa no balcão, esperando pelo garçom conversador.

Mas o Kapeta é assim, conversa com todo mundo que chega ao café. A gerente, os outros garçons e os clientes já estão acostumados. Ninguém reclama, ninguém estranha. Seis mulheres, que escolheram o local para jantar e beber depois do trabalho numa sexta-feira, cochichavam. A de cabelos castanhos apontou para o garçom e disse à amiga: “Aquele ali é o famoso Kapeta, garçom aqui do café”. Como se precisasse explicar. “É, eu sei”, respondeu a loira, analisando o Kapeta dos pés à cabeça. Ele passou por elas com pressa em direção ao balcão, sem perceber que era o assunto da mesa. Kapeta nem liga mais para os curiosos.

Para conversar, ele tira os óculos de lentes escuras – marrons ou azuis – e, com os olhos verdes, fixa nos olhos da pessoa. Parece estar analisando tudo o que escuta e pensando mil coisas ao mesmo tempo. “É muito difícil estar presente vivendo todos os instantes. Enquanto converso com você, também estou pensando em como encerrar essa conversa, por exemplo”, explica, sem cerimônia. Contar sobre a própria vida, aliás, é algo que ele não gosta muito. Mas sempre se rende. “É que é muito difícil parar de falar sobre a vida”, analisa. Então, ele tira um bloquinho de papéis picotados presos por um elástico e anota: Marcos Tadeu – KPTA - e um número de telefone fixo.

Pode ser o número da casa dele, do Martinica e até mesmo do Beirute – o da Asa Sul. É que Marcos não tem celular, nem computador, muito menos essas modernidades de MSN, Orkut, Twitter e afins. É um “analfacibernético”, como gosta de dizer. Mesmo assim, Kapeta é muito antenado com os acontecimentos do mundo graças a livros, revistas, e um radinho - desses que liga na tomada -, companhia de Kapeta nas madrugadas. Ele gosta de ouvir Rádio Câmara e Rádio Senado. “É bom para aprender sobre o discurso das pessoas. E só durmo quando clareia o dia”, explica. Então ele dorme o dia inteiro e trabalha à noite, certo? Nada disso.

“Meus anos de UnB não são tudo”
O dia de Kapeta é bem cheio. Mesmo sem cumprir os horários determinados, ele chega cedo à Universidade de Brasília (UnB), onde cursa Filosofia há 28 anos. Enquanto alguns alunos não vêem a hora de se formar, lá está Marcos Tadeu Baesse, tranqüilo, sem pressa para mudar de vida aos 51 anos de idade. “Meus vários anos de UnB não são tudo o que eu tenho”, conta, cansado de responder sempre à mesma pergunta. Toda vez que é jubilado, ou seja, expulso da universidade por reprovar mais de três vezes a mesma disciplina ou por faltar demais, Marcos Tadeu presta outro vestibular e começa um semestre novo.

Depois de alguns vestibulares, ele despertou a curiosidade até das pessoas que não conhece. Alguns até criaram teorias para explicar este fato inusitado: “Ele faz isso de propósito para continuar morando na Casa do Estudante Universitário (alojamento da UnB para alunos de baixa renda)”. Esse argumento não vale mais. Hoje em dia, Kapeta mora num apartamento na 210 Norte. E ainda assim continua com o status de estudante. Só vai para casa depois das aulas, por volta das 17h30, dá uma dormida – ninguém é de ferro – e está pronto para trabalhar lá pelas 19h. O fim do expediente é às 2h, 3h da madrugada. E está satisfeito assim. “Eu não estou perseguindo andar de carro por aí, ter celular, nem ter dinheiro. Cada um tem que fazer uma escolha”, explica.

Quem só conhece estes fatos da vida de Kapeta pode achar que ele é uma pessoa despreocupada e sem ambições, já que nunca se formou e se contenta com a rotina de garçom há mais de 20 anos. Ele mesmo tenta passar essa impressão, quando deixa em aberto: “Você quem sabe! Eu não me importo com nada”. Mas basta conversar pouco mais de meia hora com ele para se vislumbrar com uma pessoa completamente diferente. Kapeta é, sim, uma pessoa preocupada. Até demais, quando se trata de alguns assuntos. Um deles, é Tadeu, seu filho de 5 anos. E, depois, “a autonomia do pensamento”. Como uma utopia, Kapeta tenta se livrar diariamente de tudo o que lhe prende ao “comportamento urbano”. “Você tem que se ‘assenhorar’ da sua razão e não ficar repetindo a razão dos outros. É muito mais fácil ser levado do que ter consciência. E consciência tem tudo a ver com autonomia”, explica, concentrado.

O garçom adora conversar. Na verdade, fala sem parar. Foge do assunto várias vezes durante a conversa para citar um pensador, contar outra história ou explicar alguma teoria. Como bom filósofo, não gosta de definir nada, ninguém, muito menos a si mesmo. Fala de forma pausada, tomando cuidado com cada palavra escolhida.

Para não ser interrompido, prefere conversar no salão de jogos do prédio comercial onde fica o Martinica. É uma sala “guarda-tudo” do café, que tem mesas de madeira empilhadas e tralhas em geral. Recebeu o apelido “salão de jogos” porque é onde se arma uma mesinha, colocam-se duas cadeiras e vira o local perfeito para uma partida de xadrez ou dominó com os porteiros do prédio. É nessa salinha também que Kapeta guarda a bicicleta, o único meio de transporte. Ele tem carro, mas está parado na garagem de casa há quatro anos. Seria mais uma coisa para prendê-lo ao “sistema” – e isso ele não suportaria.

Quando está à vontade, Kapeta usa óculos escuros redondos com lentes azuis e deixa o cabelo grisalho solto até a cintura. Veste sapato, calça, blusa de manga comprida preta e outra por cima com o nome do escritor Franz Kafka, em um branco meio falho. Ele parece muito Ozzy Osbourne, ex-vocalista da banda de rock Black Sabbath – em bom português, sábado negro. Num ataque de euforia, Ozzy chegou a comer um morcego vivo no palco, na frente de milhares de fãs que foram à loucura. Kapeta, mesmo com o apelido, não chega a ponto de tamanha insanidade. Até porque Black Sabbath nem é o ícone da música para o garçom. Ele gosta mesmo da banda punk The Clash. E isso sim ele repete quantas vezes precisar, para quem quiser ouvir.

O apelido e a gíria
O nome Kapeta surgiu em 1978, e também nada tem a ver com qualquer referência demoníaca. Marcos Tadeu é um cara inteligente e culto. E, ao mesmo tempo, despojado. Então chama a atenção quando fala palavras incomuns como “burilada”. E gírias do tipo “véi” e “sacou?”. Às vezes, sai tudo na mesma frase. Mas houve um tempo em que as gírias eram outras. E Marcos gostava de adjetivar tudo e todo mundo com “kapeta”. (Com K porque ele gosta que seja assim - e por que seria com o convencional “c”?) E foi em uma viagem para o sul da Paraíba com colegas de faculdade, no fim da década de 1970, que ele se empolgou com um assunto e gritou um enfático “KAPETA!”. Não precisou de mais nada para o nome mudar de vez. Quase 30 anos depois, o apelido rodou Brasília. Ele é chamado assim até mesmo por quem nunca falou com ele.

Ao olhar para a figura de Marcos Tadeu, é difícil imaginar que ele tenha um filho. É que este detalhe realmente não fazia parte dos planos dele. Há seis anos, conheceu Rosa em uma festa e poucos dias depois foram surpreendidos pela notícia da gravidez. Foi um choque. “Você passa uma vida escrevendo em pedra de bronze o que você é. E aí, de repente, você tem que apagar tudo aquilo. Não é fácil”, filosofou Kapeta que, para começar uma vida nova junto com a chegada de Tadeu, raspou o cabelão que chegava abaixo da cintura. Recémnascido, o pequeno Tadeu costumava fazer sucesso no Martinica, onde era constantemente exibido pelo pai.

Papai Kapeta
O novo Marcos Tadeu teve que aprender a conviver com o dilema de manter a autonomia do pensamento e de depender de uma criança, que também depende dele. Hoje em dia, Tadeuzinho mora só com a mãe. Kapeta almoça com ele aos sábados, o leva para festinhas de aniversário, participa de reunião de pais, tenta ensinar um pouco sobre “autonomia”, e paga uma escola bilíngüe com boa educação no Lago Sul. É a mesma escola, aliás, que as filhas gêmeas do ex-presidente Fernando Collor estudaram até pouco tempo. Kapeta e Collor chegaram a se esbarrar em uma reunião de pais. E como se isso não bastasse, Kapeta ainda compartilha com o ex-presidente o dia de nascimento: 12 de agosto. Só que nove anos depois. Menos mal.

Ele minimiza os acontecimentos da vida dizendo que estas são as únicas figurinhas compartilhadas com o ex-presidente. Na saída às ruas pelo impeachment de Collor, por exemplo, Kapeta preferiu não ir. “Foi tudo armado pelo stablishment, que queria derrubar Collor porque ele estava enfrentando todo mundo, inclusive a Globo”.

E foi neste ponto que a conversa tomou outro rumo: política. Graças às rádios Câmara e Senado, ele acompanha todos os acontecimentos políticos. Sabia em detalhes o bateboca que havia acabado de acontecer no plenário do Senado sobre tal CPI da Petrobras. Citava o nome de cada um dos senadores envolvidos, sorria ao lembrar o que eles falavam e contava as vagas lembranças que tem dos plenários da Câmara e Senado. “É muito enigmático para mim também; todo esse conjunto de acontecimentos vai ocorrendo e a vida tem um fluxo que eu também fico impressionado. É tudo fascinante, encantador”, filosofa mais uma vez.

Quando percebeu que já era perto de meia noite, Kapeta resolveu encerrar a conversa e procurar uma carona para o Beirute da Asa Sul, o bar favorito. “Não me arrependo de nada”, finalizou. Cada fase da vida dele, mesmo que bem longe do convencional, foi um grande aprendizado.

Foi durante o curso de Artes Plásticas, na UnB, antes de optar pela Filosofia, que ele descobriu, por exemplo, o artista dadaísta francês Marcel Duchamp. “Eu ficaria muito satisfeito em ser apenas um garçom de café”, declarou Duchamp, cansado da pressão que sofria no meio artístico. Aquilo pegou Kapeta de jeito. “Sou igual a Duchamp, apenas um garçom de café”, falou, olhando para o horizonte, o nada insignificante garçom do café Martinica, na 303 Norte.