segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Uma segunda chance

A matéria foi publicada no jornal impresso do IESB, NaPrática

Na cultura da aldeia semi-isolada dos suruuarrás, as crianças nascidas fora do casamento ou com algum tipo de deficiência, devem ser mortas pela mãe. Ana Hakani dos Santos Suzuki, 12 anos, teve o mesmo destino, pois apresentou dificuldades em aprender a andar e não se desenvolveu como as outras crianças por causa do hipotireoidismo. Os pais biológicos de Hakani não conseguiram matá-la e se suicidaram. Bibi a enterrou viva, mas ao ouvir o choro resgatou a irmã mais nova. O avô flechou a índia, suicidando-se em seguida. A flechada não foi suficiente para matá-la e Bibi passou a alimentar a criança escondido, pois a aldeia não aceitava a sua existência. Aos cinco anos, pesava sete quilos, não andava e não falava. Hakani – não gosta de ser chamada de Ana – foi adotada por um casal de missionários e, hoje em dia, cursa o segundo ano do ensino fundamental, em uma escola de Brasília.

Aos poucos se adaptou à vida na cidade. “A estrutura física do Leonardo da Vinci a encantava. Pedia para estudar lá”, conta a mãe. A vontade de se superar fez Márcia matricular a filha no colégio. A coordenadora educacional de 1ª a 4ª série, Esther Miryan Duarte, explica: “Desde o começo eu soube em que sala encaixá-la”. A professora do segundo ano, Deise dos Santos, estava iniciando o projeto da Feira Cultural sobre o livro Tutu, o menino índio.

A terapia e o projeto escolar ajudaram Hakani a se adaptar rapidamente. Segundo a coordenadora educacional, as crianças tinham interesse em aprender sobre a cultura indígena e ajudavam a nova colega. Em uma aula recente de Português, Hakani se ofereceu para ler o enunciado da questão e, ao terminar, a turma a aplaudiu. “Os alunos a apóiam sempre. Eu não esperava por isso”, diz a professora Deise.

Hakani demonstra a melhora em pequenas atitudes do cotidiano. Quando chegou a Brasília, não andava e não falava. Hoje em dia, joga xadrez, conta algumas experiências de sua vida para os colegas, está aprendendo a falar inglês e pratica esportes.

A índia é a primeira criança em processo de inclusão no Leonardo da Vinci. O tratamento é específico conforme a necessidade e, no caso de Hakani, a turma do 2º ano A foi o diferencial. Hakani mora em Brasília há sete anos e não pretende voltar ao Amazonas. A criança surpreende com a sua história de vida e recuperação. “Vai chegar uma hora em que a diferença com as pessoas da mesma idade vai ser menor ainda. Ela tem muito potencial”, diz a coordenadora Esther Miryan.

Atini pela vida

Atini significa “voz”, em suruuarrá, e é justamente o que a ONG de Edson e Márcia pretende fazer: ouvir as mães e crianças que convivem com o infanticídio. O povo suruuarrá é composto de aproximadamente 140 índios e teve, ao longo dos últimos 20 anos, 28 assassinatos. “Tentávamos não interferir na cultura local, mas chegou uma hora em que não agüentamos mais”, conta Márcia. Em setembro de 2006, os Suzuki oficializaram a ONG e passaram a proteger os direitos das crianças indígenas. “Se existe sofrimento, provavelmente algum direito humano está sendo violado”, diz Márcia.

O artigo cinco da Constituição Federal é uma Cláusula Pétrea e prevê que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. “Pela Constituição, o direito à vida está à cima de qualquer outro, inclusive à cultura”, justifica Márcia. O deputado Henrique Afonso (PT/AC) apóia a ONG e levou a Câmara o Projeto de Lei 1.057 – Lei Muwadji – a fim de combater a prática do infanticídio e proteger os direitos fundamentais de crianças indígenas.

A ONG ajuda diretamente, além da suruuarrá, outras seis tribos. Segundo a missionária, as atitudes do grupo voluntário são mais valiosas que os discursos. “Após três anos de proteção de Hakani, Bibi percebeu nossa atitude e nos trouxe a irmã para salvarmos a vida dela”, conta. A partir de então, várias índias recorriam aos voluntários quando sabiam que os filhos seriam sacrificados. “A pressão da comunidade é forte sobre as mães”, acrescenta Márcia.

A favor da cultura

Os Suzuki ficaram com a guarda provisória de Hakani por cinco anos, até a Fundação Nacional do Índio (Funai) conceder a adoção. O juiz alegava não haver a certidão de óbito da mãe indígena. “Mas não havia nem ao menos certidão de nascimento”, diz Márcia. Segundo a Lei Federal 6.015, de registros públicos, os índios, enquanto não integrados à sociedade, não são obrigados a ter certidão de nascimento.

O professor da Universidade de Brasília (UnB), antropólogo e sociólogo Antônio Testa, defende que “perante a Constituição, os índios não são considerados cidadãos e, por isso, não devemos obrigá-los a seguir as nossas leis”. Os povos indígenas não integrados à civilização – de aldeias semi-isoladas - ficam sujeitos ao Estatuto do Índio. Para ser considerado cidadão, deve requisitar ao Estado e seguir alguns requisitos, como: idade mínima de 21 anos, conhecimento de língua portuguesa e razoável compreensão dos costumes da vida na cidade.

“A tendência é a extinção do infanticídio, pois cada vez mais as aldeias entram em contato com a civilização através de ONGs e da mídia” explica Testa. “Na cidade, as pessoas praticam pedofilia e abandonam crianças constantemente. Somos tão ou mais cruéis que eles”, acrescenta.

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