sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Militar brasileiro fala de sua passagem pelo Haiti


NaPrática - jornal laboratório do IESB
Foto: Elio Sales

O Exército brasileiro lidera a Missão de Paz no país. Em entrevista ao NaPrática, o coronel Henrique Afonso Pedrosa conta o que viu nos seis meses em que esteve lá

Os acontecimentos que ocorreram desde a independência do Haiti, na metade do século 19, marcam a realidade do país hoje. Há aproximadamente 200 anos, a região era a colônia francesa mais próspera da América devido à exportação de café, açúcar e cacau. Após várias disputas pelo poder, 26 anos de ditadura e muito sangue derramado, o país se encontra em ruínas, em meio ao lixo, ao comércio informal e à pobreza. As ruas e prédios estão destruídos, a Polícia Nacional do Haiti não tem estrutura, e a riqueza do país está concentrada apenas em 0,01% da população.

Atualmente, Cité Soleil é o bairro mais perigoso da cidade e é onde o 7º contingente brasileiro da missão de paz no Haiti atuou diariamente. O coronel do Exército e chefe de redação do Centro de Comunicação Social do Exército (Cecomsex), Henrique Afonso Pedrosa, teve a oportunidade de passar seis meses no país e garante que o trabalho foi compensador. Ele conta que a economia e a política ficaram destroçadas pelas confusões internas do país e que é possível perceber as conseqüências históricas na realidade da população.

Em fevereiro de 2004, confrontos armados eclodiram na cidade de Gonaives, e se espalharam pelo território. O presidente da época, Jean-Bertrand Aristide, requisitou com urgência o apoio da Organização das Nações Unidas. Cerca de 1600 soldados de vários países ajudariam na segurança, na transição política e na reconstrução da infra-estrutura do Haiti. No mesmo ano, o Conselho de Segurança das Nações Unidas estabeleceu a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah).

O Exército brasileiro lidera a missão de paz com o apoio de outros 15 países. Todo ano, o Brasil prepara dois contingentes com militares do Exército e do corpo de fuzileiros navais da Marinha para trabalhar em prol da população e do Estado haitiano. Longe das famílias, participando de patrulhas e operações de risco, ajudam pessoas sem perspectivas. O coronel Pedrosa conta ao NaPrática como foram os seis meses que passou no Haiti.

Na Prática - O que o senhor esperava do Haiti?
Coronel Pedrosa - O Exército prepara seus oficiais muito bem para a missão para não irmos com uma imagem distorcida do que é o país. Ao longo dos seis meses anteriores à missão vimos palestras e participamos de treinamentos. Não houve choque de adaptação. Outro motivo são os componentes culturais do haitiano, muito parecidos com os nossos. É um povo alegre e muito acessível.

NP - Por que, em sua opinião, a tropa brasileira é tão bem recebida no Haiti?
CP - Foi um trabalho construído desde o primeiro contingente. A força militar que o haitiano mais gosta é a brasileira. Conquistamos um respeito muito grande não só da população, mas com as outras tropas que também fazem parte da missão. Conseguimos fazer a diferença em certas áreas que outros países já haviam tentado e não conseguiram.

NP - Qual o índice de mortes da tropa brasileira no Haiti?
CP - Quando eu estava lá ocorreram mortes de soldados dos contingentes de outros países. O contingente brasileiro só teve uma baixa, com o soldado que pisou no fio de alta tensão e morreu. Os outros casos foram somente acidentes.

NP - Como funciona a assistência médica para os soldados?
CP - Utilizamos um hospital que é comandado pelas tropas argentinas e temos apoio na República Dominicana.

NP - Qual a responsabilidade de lidar com a imprensa em uma situação como essa?
CP - Eu lidava diretamente com a imprensa local e internacional e não tive problema algum. Quando tinha operação, eu convidava alguns jornalistas para acompanhar o Exército. Eles adoravam participar e relatavam com fidelidade o que ocorria. Nós não temos nada a esconder, tanto é que todas as reportagens a respeito foram positivas.

NP - Qual é a maior diferença entre o Brasil e o Haiti?
CP - O cotidiano e as condições ambientais são bem diferentes. Ao mesmo tempo em que eles são muito alegres, são muito violentos. A forma como tratam a mulher e a criança é violenta. Até o jeito de falar é um pouco agressivo. Encontramos muito lixo na rua. Grande parte da população de Porto Príncipe somente tem acesso à luz durante poucas horas do dia.

NP - E na questão da violência urbana?
CP - A ausência de um Estado forte no Haiti. Não é o caso do Brasil, que tem leis consolidadas e um aparato jurídico forte. Lá, as leis estão no papel, mas não funcionam, pois o Estado ainda não tem condições de colocar em prática. A ONU está ajudando muito no aspecto policial e jurídico, pois o Haiti tem que caminhar pelas próprias pernas.

NP - Por que o Exército não poderia no Brasil fazer o trabalho que faz no Haiti?
CP - A situação é diferente. No Haiti, existe a Polícia Nacional do Haiti (PNH), mas ela ainda está sendo formada, em uma situação precária, devido à ausência de Estado. Não pretendemos manter a MINUSTAH o tempo todo, então a polícia terá que aprender a comandar a situação. O Brasil tem instituições em que a função principal é a segurança pública. Aqui já temos meios constitucionais para resolvermos o problema, independente de força armada. Tem que ser criada uma solução prática diretamente na instituição que não agüenta a demanda da sociedade. Nesse ponto, podemos dar uma força, mas o problema não será resolvido permanentemente se o foco for a nossa atuação e não a atuação da polícia responsável.

NP - O inimigo de vocês na guerra civil do Haiti era bem definido?
CP - Não era exatamente uma guerra civil. No Haiti, de repente o Estado deixou de existir e grupos tomaram o controle sobre determinadas áreas e fizeram a lei do lugar. Eu não senti um punho político desses grupos. Os líderes tiveram acesso às armas e impuseram àquela população o controle diário. Aos poucos passaram a sobreviver de seqüestros, assaltos e outros ilícitos.

NP - Como é a educação no país?
CP - A população sempre pede duas coisas: educação e emprego. O batalhão brasileiro, a partir do 2º contingente, ocupou a área de uma universidade que estava abandonada e, no meu contingente, nós devolvemos as instalações ao governo para que a universidade possa voltar a funcionar. É uma melhora considerável. As escolas são precárias e a maioria é particular. A mensalidade é irrisória, pois a população não tem condições de manter esse luxo. As crianças se arrumam muito e adoram freqüentar as aulas.

NP - Qual o traço cultural característico do haitiano?
CP - A pobreza e a cor da população. É uma população de cor negra, quase na sua totalidade. Muito difícil você encontrar uma pessoa branca na rua. É quase um pedaço da África na América. Aqui no Brasil e até mesmo na República Dominicana, você ainda vê uma diferença da cor da pele. Isso não acontece lá.

NP - Qual foi a sensação na hora de vir embora?
CP - Você sente falta do seu país e dá alegria em você voltar pra casa. Estava com saudades da minha mulher e dos meus filhos. Passei seis meses sem encontrá-los. Dá uma satisfação enorme de ter concluído a missão e de ter feito algo por outro povo que estava precisando de ajuda. Sensação de dever cumprido. Voltei bem.

NP - Como está a situação hoje?
CP - Hoje em dia já podemos dizer que a área é segura. Quando chegamos em dezembro, passávamos e éramos bombardeados. Andávamos com carro blindado e hoje já andamos de carro aberto e a população reconhece o nosso trabalho. A economia informal ainda é grande no Haiti, as ruas estão sempre cheias de gente vendendo especiarias. A prioridade deve ser dar oportunidades à população.

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