sexta-feira, 9 de maio de 2008

Seis linhas, por favor.

Estava quieta. Era sexta-feira e batia aquela preguiça de final da semana. Antes do almoço eu já tinha terminado o meu trabalho. Voltaria à tarde para o jornal só para ajudar os outros estagiários e lapidar o que eu já tinha feito. Evitar o estresse é o nosso lema. Como já era por volta de 13h, peguei minha bolsa e decidi almoçar, mas meu chefe me parou: "Tá tudo adiantado? quer fazer uma matéria?", perguntou. Eu não lembro a última vez que fiz uma matéria e saiu no jornalão. Muito menos uma pauta não-social, que não fosse de meninos de rua jogando bola e histórias de crianças carentes em visitas à embaixada x ou y.
Então é claro que aceitei.
Eu deveria acompanhar a apresentação de uns dados do Hospital de Base. O hospital tratava mais casos de acidentes de queda -- de escadas, na rua, em casa --, do que de acidentes de trânsito. E isso era "alarmante".

Almocei correndo, voltei para o jornal, pedi o carro, e fui. Às 14h em ponto eu estava sentada no auditório do HB, pronta para anotar absolutamente tudo. Eu achava que os dados eram importantes, então assimilaria tudo rapidamente e iria em busca da minha parte favorita nas matérias: os personagens. Mas o evento só começou por volta das 15h, quando a loirinha global chegou, junto com um cara gordo e de cabelos brancos que eu descobri ser o secretário da saúde, Geraldo Maciel.
É assim que funciona: Globo chegou, chega todo mundo; o que não tinha começado, começa; o que não tinha acabado, acaba. E ai de você se reclamar...
Mas me arrependi de ter desejado que a apresentação fosse rápida. Logo no terceiro slide, não entendia mais nada que a "servidora do Ministério da Saúde" falava. Não dava tempo de anotar o que ela dizia, nem de ver as imagens no power point produzido com tanto carinho. Era tudo voando e a mulher falava tudo errado. Entrei em desespero. No meio das explicações eu me flagrava pensando: "Não é póprio que fala, é própriooo", e pronto, quando eu dava por mim, já estava perdida de novo. Ela também tinha uma mania de comentar sobre a realidade social no mundo. Eu pensava em me matar ali, naquele momento.

Quando me concentrei de novo, percebi que o pessoal da Globo, da CBN e o secretário não estavam mais na sala. Então por que eu estava?
Eles saíam, eu saía, uma loucura.
Se eu perdesse algum fato super importante, eu ia me ferrar. A sensação que eu tinha era de estar sozinha ali. A super-repórter da super-Rede-Globo não me ajudaria, e a magrela da CBN tinha chegado completamente atrasada. A loirinha de olhos verdes e global estava andando em uma plataforma anos 60 e olhando para o teto o tempo inteiro. Não sentiria nem o meu cheiro na frente dela. Então eu teria mesmo que depender só de mim. E assim foi.
Depois de horas, descobri o release com todos os gráficos para a minha matéria. Nessa hora, misto de felicidade e raiva. Se eu tivesse conseguido o maldito papel às 14h, meu trabalho seria esperar o secretário, pegar a fala dele e ir embora em busca dos personagens. Mas aí não teria graça!
Ainda esperei um tempo ali, mas vi que nada mais aconteceria. A CBN estava com a matéria quase pronta e a menina da Globo não parava de se maquiar. "Câmera, este batom ficou bom? Não gostei".


Cansei e fui ao PS. Para isso, uma longa jornada no maior calor do mundo. O HB é ENORME. A sala de espera do atendimento do hospital tem um cheiro diferente, um clima diferente, nunca tinha ido lá. As macas saem das ambulâncias com pessoas muito mal e passam na frente de todo mundo que espera a vez de ser atendido. Até quem quer tirar uma simples espinha da testa acaba vendo cenas constrangedoras. São muitas pessoas sofrendo. Olhei em volta e vi gente com nariz e boca enfaixados, que não podiam dar entrevista, pessoas chorando porque os parentes estavam mal, e de repente, a luz: uma única moça sentada, tagarela, com o tornozelo inchado. Eu precisava de alguém que tivesse caído e machucado a perna, o braço, o que fosse. E ela era esse alguém.
"Trabalho com vendas, estava andando em um lugar sem calçada, torci o pé e caí. Me estabaquei", contou Maria Batista, 26 anos, rindo.

Mas era fraca. Personagem fraco. Eu tinha que achar outro.

Nisso, chega a menina da CBN esbaforida: "Você conseguiu personagem?"
- Um bem fraco.
- Eu preciso de um. Olha aquela ambulância!
E ela invade a porta de trás do carro, onde tem duas moças: uma deitada meio inconsciente e uma sentada, desesperada, assinando a papelada do hospital. A repórter, sem cerimônia, pergunta para a moça esbaforida:
- Qual o problema dela?
- Ela passou mal e caiu. Acordou sem falar nada com nada.
- Você imaginava que uma queda causaria isso?
- Mas ela passou mal e caiu.
- Fala aqui no gravador que você não imaginava que uma queda poderia causar um transtorno deste tamanho.
- Eu não imaginava que uma queda poderia causar um transtorno deste tamanho.
- Obrigada.
Enquanto isso, a moça deitada e alheia me olhava e se esforçava para entornar a boca e sorrir, mas não conseguia. O que dirá falar algo. Ainda conversei com a irmã que cuidava ela, mas resolvi dar privacidade. Aquele também não era um personagem decente.

Insistente, fui até a porta do PS, onde só os autorizados entram e decidi seguir um homem de muleta e pé quebrad que tinha a-ca-ba-do de entrar. Ele seria o melhor personagem de todos. Fui barrada.
- Guarda, só quero falar com aquele moço, por favor.
- Dá a volta no hospital e vai encontrar ele saindo ali do outro lado. (Como já disse, o HB é ENORME)
- Uma ova! Por favor, deixa eu passar??
E nessa hora passa o produtor, a repórter e o câmera da Globo. Eles nem me viram. Porque não olharam para o lado.
- Moço, por que eles podem e eu não? Ó, moço, ó: Correio Bra-zi-li-en-se.
- Eles têm autorização.
- Como eu faço pra pegar essa autorização?
- Dá a volta no hospita....
- Obrigada.

Olhei em volta e peguei o celular para chamar o carro do jornal. Mas naquela última olhadela para tirar o peso na consciência, me deparo com uma moça e dois meninos completamente ralados... "Coisa de criança", pensei. "Eles devem ter caído", pensei animada. (Essa felicidade em cima da tristeza dos outros é comum na profissão). Dito e feito: eles tinham caído de bicicleta naquela tarde mesmo e, segundo a minha apuração, queda de bicicleta era motivo de atendimento diariamente no hospital. Achei meus personagens!
"Só me lembro que a gente descia uma ladeira bem rápido e meu irmão perdeu o controle da bicicleta e batemos a cabeça no chão", contou o menorzinho, Natanael Guimarães. Morri de dó. Conversamos ainda por cinco minutos, perguntei tudo que eu precisava e logo pensei: "Pena que estou sem fotógrafo", já imaginando a matéria no jornal. Total foca.

Voltei pra redação animada e me sentindo produtiva depois de 10 horas trabalhando. Eu tinha feito um podcast com o secretário, tinha adiantado a matéria por telefone para o site e só me restava sentar e escrever as minhas 30 linhas. Estava calma, terminei de fazer o Grita Geral e comecei a escrever a curta -- o que seria no final das contas toda a minha apuração da tarde: uma materinha de 12 linhas.
Demorei uma hora pra escrever tudo, com a quantidade de número, um texto confuso e repetição de palavras sem sinônimos.
Mando pro editor.
Péééééém.
Volta e refaz, mas desta vez, com seis linhas.
Sem pensar que isso fosse possível, fiz. Mandei pro editor. Ele editou, ele foi indiferente, ele me liberou.

Depois saí correndo pra aula. Afinal de contas, é lá que eu aprendo a fazer jornalismo de verdade, right?

Um comentário:

Luiz Humberto P.V. Neto disse...

Jú, essa sonora da CBN foi ao ar?

Fraudar sonora é qualquer nota, hein?

Abraços!