quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Sede do TRF1 custa R$498 milhões

TRF e TSE terão novas sedes na Avenida das Nações. As obras são projetadas por Oscar Niemeyer sem passar por licitação


NaPrática - jornal laboratório do IESB

Quando a Família Real chegou ao Brasil, em 1808, a Corte portuguesa aderiu sem restrições o luxo e a grandeza do poder. A realeza passou a ser um espetáculo, com construções magníficas e demonstrações de uma nação gloriosa. Quase 200 anos depois, ainda é possível perceber o deslumbramento da elite com o poder.

Os terrenos da Avenida das Nações – L4 sul - estão sendo ocupados por grandes tribunais do judiciário brasileiro. Primeiro o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e depois o Tribunal Superior do Trabalho (TST). Dentro dos próximos anos, serão inauguradas sedes do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), e, em 2015, a sede palaciana do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1).

O tribunal de meio bilhão

No Brasil existem cinco TRFs. O maior é o da 1ª Região que abrange, além do Distrito Federal, 13 estados e representa 80% do território nacional. Com essa justificativa, o tribunal construirá um complexo de 169 mil metros quadrados composto de quatro prédios, gabinetes, plenários, salas para os motoristas dos desembargadores, sala para os advogados, centro cultural, depósitos de processos, creche, restaurante, bancos e lojas. Com a arquitetura de Oscar Niemeyer, nos mesmos moldes dos outros dois tribunais já construídos na L4, a obra custará R$498 milhões aos cofres públicos.

Atualmente, a principal sede do TRF1 fica no Setor de Autarquias Sul, e tem uma área de 50 mil metros quadrados. As funções administrativas são distribuídas em nove prédios, alguns localizados a 11 quilômetros de distância da sede principal, o que torna o trabalho lento e caro. Com a nova sede, o número de funcionários também vai aumentar. Até 2015, serão 51 desembargadores federais, em relação aos 27 atuais. Hoje, mais de dois mil servidores trabalham no TRF1 e é por onde passa, por ano, mais de 68 mil processos.

O TRF da 2ª Região, que representa o Rio de Janeiro e Espírito Santo, também passará por reforma. A sede atual ficou pequena. O espaço seria insuficiente para guardar os processos e alocar a quantidade necessária de funcionários. São três mil servidores que facilitam o trâmite de um pouco mais de 75 mil processos por ano. A nova sede terá 138 mil metros quadrados e um custo bem menor, de R$ 115 milhões. Para o professor da UnB e especialista em Finanças Públicas, Roberto Piscitelli, se a reunião dos prédios em um único espaço objetivar a melhoria do serviço, a construção é bem-vinda. “O objetivo da obra é o serviço que será prestado à população e não futilidades dos ministros”, diz.

Assim como o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Tribunal Superior do Trabalho (TST), o TRF1 é um tribunal de segunda instância. Ou seja, julga apenas recursos que já passaram pelos Tribunais de Justiça locais. No caso, a obra do tribunal regional será maior e mais cara que a do STJ, que comporta cerca de cinco mil servidores, cinco mil pessoas que passam diariamente pelo tribunal e os 700 mil processos encaminhados por ano – em espera e em julgamento.

A vez do TSE

A grande vala já foi aberta, pedreiros manejam as máquinas e os guardas apontam para as três placas que explicam a obra e garantem o prazo de 36 meses para a construção dos 115 mil metros quadrados da nova sede do TSE. O valor chega a R$ 336,7 milhões. No último dia 22, o Ministério Público Federal pediu a suspensão da obra. O trabalho continua até a Justiça Federal conceder ou não o embargo da obra e cancelar os futuros recursos.

Roberto Piscitelli defende que alguns prédios do governo estão em péssimas condições, como o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT). “Se me dissessem hoje que vão reformar o TJ, eu concordaria, pois as pessoas precisam de um conforto mínimo para trabalhar”, explica. “É diferente de reformar apartamentos de deputados e senadores e colocar banheiras de hidromassagem”, exemplifica. O fato citado se refere à extravagância do Poder Legislativo em aprovar a reforma dos 96 apartamentos funcionais dos deputados da Câmara. A licitação já foi aberta. O custo de cada obra custará, em média, R$350 mil. Em cada apartamento uma banheira de hidromassagem.

Piscitelli acha ainda que as pessoas criticam as obras sem embasamento. Ele considera importante perceber que as atuais sedes dos tribunais já possuem restaurantes para os servidores, um espaço cultural para exposições e eventos, e que a creche é prevista em lei quando uma instituição tem um número mínimo de servidores.

A cidade de Niemeyer

Os brasilienses vivem cercados de obras de Oscar Niemeyer. Alguns prédios nem são reconhecidos como obras do arquiteto, como o antigo Touring Clube, na rodoviária, que é tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Quando Lúcio Costa ganhou o concurso nacional para planejar a cidade, Niemeyer garantiu que vários prédios levassem a valiosa assinatura. O Museu Nacional e a Biblioteca Nacional, inauguradas em 2006, são planos de quase 40 anos atrás. Mas os tribunais, não.

As obras recentes da Avenida das Nações são projetadas pelo arquiteto e não passam por licitação ou concurso nacional, devido ao status de “notória especialização” a ele concedido. Segundo o diretor da Diretoria de Patrimônio Histórico e Artístico da Secretaria de Cultura do Distrito Federal, José Carlos Coutinho, a beleza da obra de Niemeyer é inquestionável. “Muita gente acha que Brasília é criação de Oscar Niemeyer, tamanho é o brilho do seu trabalho”, diz. Desde 2001, o escritório Arquitetura e Urbanismo Oscar Niemeyer já recebeu R$ 10,6 milhões por serviços realizados para o governo federal. Este ano, a empresa já recebeu cerca de R$ 1,3 milhão apenas pelo conjunto de pré-projetos para a nova sede do TSE.

O professor da Faculdade de Urbanismo e Arquitetura da UnB, Frederico Flóstole, é a favor de concurso público para a construção dos tribunais. Para justificar sua tese, ele explica que quando Lúcio Costa ganhou o concurso nacional para planejar Brasília, ele tinha apenas boas idéias. “O concurso foi a oportunidade da vida dele de crescer e ser quem ele é hoje em dia”, diz. “Hoje isso não é mais possível, pois Niemeyer não deixa os arquitetos menores crescerem”, acrescenta.

Ele ainda vai mais longe. “Oscar Niemeyer não é maior que a lei, mas ainda assim está anulando dezenas de novos talentos”, indigna-se. José Coutinho explica ainda que, por mais que outros arquitetos percam espaço para Niemeyer, ele se identifica com Brasília pela proximidade que teve com o projeto de Lúcio Costa. “É delicado criticar Niemeyer, que continua trabalhando aos 100 anos e fez todas as obras maravilhosas durante a vida”, diz.

Para o professor Frederico Flóstole, Brasília não caminha a favor da modernidade da arquitetura, pois as obras continuam repetindo o que já foi feito há 50 anos. “Todos os prédios dos tribunais têm a mesma forma, tudo se parece, ele está construindo a própria supremacia”, critica.

GDF recolhe 32 toneladas de lixo das margens do Lago Paranoá

Duzentos agentes ajudam a limpar o lago. Em quatro dias foi encontrado o dobro da última limpeza, feita há dois anos


NaPrática - jornal laboratório do IESB

Muitos brasilienses usam o Lago Paranoá para praticar esportes, passear e pescar nos finais de semana. Muitos também utilizam os 37 km² de água como depósito de lixo. Oito meses sem chover e cadeiras, sofás, latas e garrafas ficaram à mostra nas margens, chamando atenção do GDF a respeito do estado crítico do cartão postal da cidade. Durante a semana do dia 23 ao dia 26 de outubro, o Serviço de Limpeza Urbano (SLU), organizou um mutirão e recolheu 32 toneladas de lixo, o dobro da última limpeza, realizada há dois anos.

O saldo do último trabalho, realizado há dois anos por iniciativa voluntária da antiga Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Naturais (Semar), atual Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente (Seduma), foi de 15 toneladas em uma semana de serviço. Dessa vez, a operação acontece por parte do Governo do Distrito Federal e reúne diversas instituições para promover a limpeza da orla, como Corpo de Bombeiros Militar do DF (CBM), Companhia Energética de Brasília (CEB) e algumas ONGs.

Durante essa semana, limite entre a seca e o início das chuvas no Distrito Federal, o lago apresentou o menor nível de água de todo o ano. Normalmente em 1080 metros em relação ao nível do mar, registrou, nesses quatro dias, 960 metros. A CEB ainda ajudou a diminuir o volume aumentando o trabalho da hidrelétrica da Barragem do Paranoá para facilitar o trabalho dos agentes nas margens. Com as turbinas ligadas durante o dia inteiro, a CEB também gerou mais energia para a população do DF.

O Corpo de Bombeiros ajudou na limpeza sub-aquática das margens e a empresa Eco Atitude intermediou o contato da SLU com a cooperativa de reciclagem Superação. A ONG presenciou o último dia de limpeza, quando tiveram acesso a todo o material arrecadado do lago, mas, segundo o presidente da cooperativa, Francisco de Assis Almeida Linhares, grande parte do material está contaminado de alguma forma e talvez seja possível reciclar apenas 10% do material recolhido. Segundo ele, a inutilização dos materiais acontece quando o objeto tem muito contato com o sol, água ou com bactérias decompositoras. “A estrutura intermolecular é alterada e não conseguimos mais reciclar, então mandamos para o lixão”, explica Assis.

A diretora-geral da SLU, Fátima Có, dividiu os agentes em seis frentes que trabalharam em conjunto. Onde uma frente acabava o serviço, a outra começava, dando continuidade e agilidade ao trabalho realizado na margem e dentro das águas. Segundo a diretora, os pontos mais críticos são a Ponte do Bragueto, no final da Asa Norte e no Bananal, um dos braços hídricos que compõe a bacia do Lago Paranoá, onde é encontrada grande quantidade de resíduos sólidos e Aguapés.

Segundo o professor de mestrado em Ecologia no Instituto de Ciências Biológicas da UnB, Paulo Sérgio Bretas de Almeida Salles, a proliferação dessa planta demonstra a grande quantidade de nutrientes no lago, normalmente vinda de resíduos de esgoto e lixo. “Até um certo ponto, os Aguapés ajudam a limpar a água, mas passam a ser prejudiciais quando aumentam muito”, explica. Segundo ele, um dos motivos é por cobrirem a superfície da água, diminuindo o nível de fotossíntese das algas e plantas submersas.

É melhor prevenir

O Lago Paranoá é um dos poucos casos em que o alto nível de poluição foi revertido. Hoje em dia, a situação é amena. “A qualidade da água é boa, o que gera a democratização do espaço e permite que a população faça bom uso do Lago”. Segundo ele, os brasilienses têm que usar, para gostar, e cuidar do lago.

O mutirão visa ao menos amenizar a situação do Lago Paranoá e o SLU não planeja realizar outras ações como essa. O objetivo é prevenir a sujeira e evitar que o estado fique crítico novamente. A atuação durante essa semana não será uma ação isolada. Segundo Fátima Có, haverá uma maior fiscalização, busca de esgotos clandestinos, limpeza de bocas de lobo e uma agenda ambiental para o ano todo. Ela ainda enfatiza que essas ações não seriam tão urgentes se a população se conscientizasse a respeito do Lago Paranoá. “Só estamos limpando porque alguém sujou”, diz. Todo o lixo recolhido será levado ao Distrito de Limpeza, na L4 sul, para ser selecionado e reciclado.

Ivani Paula da Silva, 32 anos, é mãe de quatro crianças e, aos finais de semana monta seu acampamento embaixo da ponte do Bragueto. É quando instituições de caridade e carros param para fazer doações às famílias. Ela confessa que uma vez ou outra joga resíduos no Lago Paranoá. “A gente acaba jogando algumas caixas, garrafas e latas”, diz. O motivo é simples: “Não tenho como carregar tudo isso”. Para ela, o lago é muito grande, e ela acredita que sua atitude não altera a qualidade da água. “Tanto é que meus filhos adoram tomar banho de lago quando ficamos aqui”, explica.

Segundo o professor Paulo Sérgio Bretas, um dos maiores motivos de poluição do lago é a construção urbanística desordenada na orla. Com construções fora dos limites e regras, acontece o assoreamento do lago, formando bancos de areia e em casos extremos, a extinção do lago. Hoje em dia, o Lago se encontra cerca de 10% menor do que foi há dois anos.

O professor é otimista e diz que, como é um lago artificial, as chances de ser completamente assolado são pequenas. “Cada vez mais as crianças e pessoas estão preocupadas com a questão ambiental, o que nos dá motivos para celebrar”, diz. “Mas os setores produtivos parecem cada vez mais gananciosos, acabando com a vegetação nativa da região”, contrapõe. Sessenta por cento da área de Brasília é protegida por lei, o que dificulta alguns tipos de ações. “A questão do Meio Ambiente é pauta em vários países do mundo, e parece que o DF não acompanhou essa tendência e ainda precisa de muita vontade e conscientização”, diz.

Como a capital do Brasil se encontra em uma área em que o clima é desagradável durante o ano inteiro, foi necessária a construção do lago para amenizar o microclima da cidade. Com os 37 km² de área, tornou-se possível manter temperatura estável, influenciar na formação de chuvas, no desenvolvimento de plantas, fotossíntese, renovação de oxigênio, além de possibilidade a prática da pesca, esportes náuticos e geração de energia.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Professora de patinação leva crianças carentes para competir em Nova York

O grupo não tem patrocínio e arrecada dinheiro nas ruas. Todas as crianças foram a maratona de Nova York e trouxeram ouro para o Brasil

NaPrática - jornal laboratório do IESB

Todos os domingos de manhã, a professora de patinação Tuca Reichert busca em casa cada um dos seus alunos. O destino é qualquer pedaço de asfalto que permita o treinamento da semana. As 14 crianças, entre 7 e 14 anos, fazem parte do Projeto Patinar com Segurança, e treinam no Parque da Cidade, na Ermida Dom Bosco e no Eixão, sonhando em participar dos campeonatos fora do Brasil. Com pouco patrocínio e muito esforço, Tuca conseguiu levar quatro alunos para competir na 16ª Maratona de Velocidade de Nova York, no último mês. Todos voltaram com medalha de ouro.

Sempre que aparece a oportunidade de um campeonato internacional, os patinadores vão às ruas arrecadar dinheiro de passagens, hospedagens e alimentação. Tuca desenvolveu um projeto de patrocínio, que sofreu um corte de 80% por parte da Poupex – a maior patrocinadora. “Mas já ajuda bastante”, diz. Mesmo com o preconceito - uma aluna foi descriminada pela cor da pele - e as dificuldades financeiras, os pequenos competidores conseguem obter bons resultados em todas as provas que participam.

Assim que a equipe voltou ao Brasil, em 1 de outubro, a luta recomeçou: as primeiras moedas foram depositadas no pequeno galão de água vazio, Tuca continuou a procurar patrocínio e a saga nos sinais de trânsito e nos supermercados voltou a ser rotina. A próxima meta é a 1ª Maratona de Houston, nos Estados Unidos, no dia 29 de outubro.

Para esse campeonato, o grupo já conseguiu alimentação e hospedagem de graça, mas ainda precisa da passagem. A professora seleciona sempre quatro alunos para as viagens, mas, como aconteceu no primeiro campeonato, nem todos têm a chance de ir. “Quando não conseguimos o dinheiro suficiente, somos obrigados a cortar alguns alunos da lista”, explica.

O projeto

A primeira experiência internacional do grupo foi na 15ª edição da Maratona de Nova York. Essa corrida de velocidade acontece no Prospect Park, Brooklyn, nos Estados Unidos e, ao contrário do comum, possui obstáculos naturais. Em um dia de movimento normal no parque, os pequenos corredores chegam a 40 km patinando entre as pessoas que estão passeando, andando de bicicleta e brincando com animais.

Ter essa oportunidade é sonho de qualquer criança, mas segundo Tuca, as responsabilidades vão além. Para ela, “a medalha de ouro é como um estímulo para as crianças carentes”. “Meu objetivo é dar oportunidade e ensinar um pouco de cidadania e civilidade”, acrescenta. Os alunos, moradores do Varjão, Sobradinho, Recanto das Emas e Ceilândia precisam tirar notas boas e ter bom comportamento na escola e em casa para garantirem a vaga. Tuca enfatiza aos interessados: “Gostou de participar? Então faça por onde”.

O contato de Tuca com os responsáveis das crianças – pais e professores – é bem próximo. Uma vez por mês eles se reúnem para acompanhar o andamento dos alunos. A aluna Thaise da Silva, 13, fica impressionada com a professora: “Mal acontece alguma coisa e a Tuca já sabe”. Além de ensinar atitudes cotidianas e a patinação em si, a patinadora profissional ensina também a escrever, incentiva a leitura e a melhora da caligrafia de cada aluno. “Quando temos dúvida no dever de casa, Tuca tira todas as nossas dúvidas”, explica a aluna.

A iniciativa

A patinação é a vida de Tuca. A antiga diretora brasileira de patinação de velocidade já colaborou de diversas formas para divulgar da patinação radical e de velocidade pelo país. Em Brasília, é conhecida pelo engajamento social e pelas aventuras em cima das quatro rodas. Seu primeiro projeto independente foi aula de patinação para adultos – Patinação em Segundo Tempo. Apenas em 2004, após sofrer um acidente grave de skate, Tuca resolveu colocar em prática a idéia do projeto com crianças carentes.

Com o apoio da família e após passar quase um ano em repouso absoluto, Tuca se recuperou e voltou a patinar. “Tive traumatismo craniano e facial, tirei osso da bacia para colocar na clavícula, que estava destruída”, conta. “Eu percebi que eu estava desenvolvendo o projeto certo de maneira errada, eu deveria dar mais oportunidade às pessoas”, explica.

No dia 9 de maio de 2005, o Projeto começou finalmente a funcionar. A partir de então, Tuca reuniu os patins que estavam esquecidos no armário e distribuiu para seus primeiros cinco alunos. Aos poucos, a quantidade de alunos aumentou e, consequentemente, a necessidade de mais acessórios. Hoje ela garante animada: “Estou com 14 crianças e, por enquanto, é o máximo que eu agüento”.

Nas viagens a outros países, Tuca e seus alunos também aprendem novas técnicas para implantar no Brasil. Thaíse foi à Itália há dois meses atrás. “Aprendi novas técnicas, a história de outro país, conheci pessoas novas e ano que vem, espero poder competir”, diz animada e esperançosa. Quando questionadas o que querem ser quando crescer, nenhuma das crianças pensam para responder: patinador profissional.

terça-feira, 9 de outubro de 2007

A segunda vida de Hakani

Matéria da Hakani no Correio Braziliense - de Marcelo Abreu
Foto: Breno Fortes

Nas olimpíadas da escola — onde estuda desde abril do ano passado —, ela brinca, joga queimada e adora corrida. Dá nó em pingo d’água. No recreio, não dispensa um pedaço de bolo de chocolate com morango. Na Feira Cultural, quando a turma desenvolveu o projeto Salve a Amazônia, sob o comando da professora Deise Boechat, ela fez o papel de uma das três indiazinhas na peça Tutu, o menino índio. Aos 12 anos, na 2ª série, é uma das alunas mais animadas. Contagia pelo sorriso espontâneo e está sempre disposta a ajudar os coleguinhas. Camila, de 8 anos, é sua melhor amiga. As duas fazem as tarefas juntas, uma conta história para outra, uma escuta a outra. Se entendem até no silêncio. “Ela é divertida, engraçada e uma amiga muito legal. Adora o boneco Tutu, fez até roupa pra ele”, confidencia Camila.

Essa é a melhor e mais emocionante parte da história da pouca vida de Ana Hakani, que venceu os horrores da rejeição e a morte sucessivas vezes. Até completar 5 anos, ela simplesmente não existia. Não era considerada gente. A menina é índia da tribo Suruarrá, etnia semi-isolada no sul da Amazônia, onde vivem atualmente apenas 141 pessoas. Era a quinta e única filha de Dihiji, um dos maiores caçadores da tribo, e Bujini, mulher forte e boa parideira.

O nascimento do bebê foi comemorado. Teve canto e dança na selva. Teve corpos pintados em ritual sagrado. Afinal, era a primeira menina da família. Como sorria muito, a mãe não hesitou em dar-lhe o nome de Hakani — que significa sorriso na língua falada pelos suruarrás. Mas, meses depois do parto, Bujini começou a perceber que Hakini era diferente. E a comparou ao irmão, Niawi, um ano mais velho. O menino não andava, não falava e enfrentava o preconceito de parte da comunidade, que não o aceitava.

Na crença da tribo, o menino era filho de um espírito mau, que sem permissão da mãe, a teria engravidado durante o sono. Os suruarrás acreditam que criança com algum tipo de deficiência não é ser humano. E o fim deles é a morte. Sem apelos, sem condescendência. Sem ritual. E assim, em meio ao temor da mãe e do pai com o destino da filha, Hakani completara meses de vida. A deficiência neuromotora ficara mais visível. Perto dos 2 anos, a menina foi, definitivamente, condenada à morte. Com ela, o irmão Niawi. Cabia aos pais a execução. Com as crianças, a morte é selada com um gole de timbó — espécie de chá, feito do veneno de um cipó.

Os pais, porém, não tiveram coragem de dar o chá venenoso para os dois filhos. Em vez disso, eles mesmos tomaram. E morreram agonizando. Deixaram cinco irmãos órfãos. O mais velho deles, Aruwaji, então com 15 anos, virou o responsável pela família. E seguiu, influenciado pela tribo, com a missão de matar os dois irmãos deficientes. Tentou matar os dois a pauladas na cabeça. Fez uma cova rasa e os jogou ali, desmaiados. Enquanto jogava terra, Hakani chorou. Sem reagir, Niawi foi enterrado ainda vivo. Há quem tenha escutado, horas depois, seu choro debaixo da terra. Ninguém teve coragem de salvá-lo.

Sofrimento sem fim

Ninguém — nem tios, nem avós — quis cuidar da menina. Bibi, um irmão do meio, então com 9 anos, compadeceu-se com o sofrimento de Hakani. E passou a cuidar dela, mesmo contra toda a comunidade e os próprios parentes. Dava-lhe banho e comida. Certa vez, o avô materno flechou a neta, entre o ombro e o peito. Hakani sobreviveu, mais uma vez. Aruawaji, o irmão mais velho, passou a ser hostilizado pela tribo por não ter conseguido matá-la. Transtornado, também tomou o timbó. O avô também fez o mesmo.

E assim, a família foi se dizimando. Entres os suruarrás, o índice de suicídio é comum, e considerado o mais alto entre todas as etnias do país. Para eles, é o caminho que os leva ao encontro com seus ancestrais. Por rejeitar qualquer decadência física, sobretudo a de nascença, o infanticídio é também um ato até heróico. Hoje, na família de Hakani, o único vivo é Bibi, com18 anos, aquele que, ao modo dele, cuidou da irmã e não a deixou morrer.

Aos 5 anos, Hakani não passava de 68cm e pesava cerca de 7kg. Vivia escondida. Não andava, não falava, não se comunicava. Nem a língua da sua tribo ela dominava, já que ninguém a enxergava, exceto Bibi. Em 2000, um casal de missionários presenciou o drama de Hakani. E começou uma verdadeira luta para salvá-la.

O paulista Edson Suzuki, hoje com 45 anos, e a mulher Márcia, carioca, 44 , estavam na região desde 1986. Lingüista, o casal estudava os índios suruarrás. Como sabiam falar a língua deles, fizeram os primeiros contatos com os parentes de Hakani. A avó materna lhes disse: “Não queremos nem vamos cuidar dessa menina”.

Com permissão da Fundação Nacional do Índio (Funai) e da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), o casal teve permissão para levar Hakini à primeira consulta, em Porto Velho. Lá, depois de alguns meses de exames, o primeiro diagnóstico: o “espírito mau” de Hakani (e do irmãozinho enterra do vivo) era causado pelo hipotireoidismo congênito, que, dentre outras coisas, afeta a produção de hormônios do crescimento. De Porto Velho, por recomendação dos especialistas, Edson e Márcia levaram a menina para o Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto (SP), onde o tratamento foi mais longo e todas as causas checadas.

Adoção plena

Aos seis anos, com medicação e alimentação corretas, Hakani começou a falar, andar, engordar e crescer. Aos poucos, se transformava. Mas havia um problema que afligia o casal. E depois, Hakani voltaria à tribo que a rejeitara? Começou, então, a peregrinação pela guarda da menina. Depois de cinco anos lutando no Juizado da Infância de Manaus, o juiz finalmente lhes concedeu a adoção. Edson e Márcia tiveram a permissão de chamá-la de filha. “Na hora em que a peguei no colo pela primeira vez, me senti mãe. Chorei muito. A vida de uma criança não tem preço”, reflete Márcia.

A indiazinha suruarrá recebeu o nome de Ana Hakani dos Santos Suzuki. Ganhou finalmente pai, mãe. É a única filha do casal de missionários, que, pelas constantes viagens às tribos indígenas, sempre adiava o desejo do primeiro filho. No ano passado, a família desembarcou em Brasília. Hakani foi matriculada no Leonardo da Vinci, na 914 Norte. Lá, recebeu o apoio, a acolhida e aceitação incondicionais da direção, dos professores e, principalmente, dos novos amiguinhos.

Faz natação, acompanhamento com uma fonoaudióloga e terapia. Hoje, com a medicação, Hakani mede 1,23m e pesa 35kg. Encantado com a filha, Edson se penitencia: “Hoje, só sinto tristeza por não ter tido a coragem de fazer isso antes. Ela viveu três anos abandonada e sofrendo todos os horrores. E ainda tem gente que defende a tese de que ela devia permanecer na sua tribo, que não tínhamos o direito de tirá-la de lá”.

Na escola, a professora Deise Boechat, 42, se emociona: “Hakani foi um presente do céu para todos nós. Ela só veio somar”. As amigas de classe Ana Carolina Heinen e Renata Pomelli, ambas de 7 anos, são fãs de Hakani. “Ela é bem legal”, diz Ana. Renata emenda: “A gente brinca muito no recreio”. Camila de Oliveira Zem, 8, a favorita amiga, ensina, dando um chute a qualquer sinal de preconceito: “Ela é igualzinha a gente. Eu nem lembro que ela é índia”.

Hakani escuta a amiga falar. Comovida, devolve: “Ela é minha melhor amiga aqui na escola”. De mãos dadas, as duas saem correndo pelos corredores. Hakani está visivelmente feliz. Há muito para conversar, brincar, aprontar. Há muito para viver. Essa é uma história onde quase tudo era improvável. Até mesmo o direito de viver.

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Uma segunda chance

A matéria foi publicada no jornal impresso do IESB, NaPrática

Na cultura da aldeia semi-isolada dos suruuarrás, as crianças nascidas fora do casamento ou com algum tipo de deficiência, devem ser mortas pela mãe. Ana Hakani dos Santos Suzuki, 12 anos, teve o mesmo destino, pois apresentou dificuldades em aprender a andar e não se desenvolveu como as outras crianças por causa do hipotireoidismo. Os pais biológicos de Hakani não conseguiram matá-la e se suicidaram. Bibi a enterrou viva, mas ao ouvir o choro resgatou a irmã mais nova. O avô flechou a índia, suicidando-se em seguida. A flechada não foi suficiente para matá-la e Bibi passou a alimentar a criança escondido, pois a aldeia não aceitava a sua existência. Aos cinco anos, pesava sete quilos, não andava e não falava. Hakani – não gosta de ser chamada de Ana – foi adotada por um casal de missionários e, hoje em dia, cursa o segundo ano do ensino fundamental, em uma escola de Brasília.

Aos poucos se adaptou à vida na cidade. “A estrutura física do Leonardo da Vinci a encantava. Pedia para estudar lá”, conta a mãe. A vontade de se superar fez Márcia matricular a filha no colégio. A coordenadora educacional de 1ª a 4ª série, Esther Miryan Duarte, explica: “Desde o começo eu soube em que sala encaixá-la”. A professora do segundo ano, Deise dos Santos, estava iniciando o projeto da Feira Cultural sobre o livro Tutu, o menino índio.

A terapia e o projeto escolar ajudaram Hakani a se adaptar rapidamente. Segundo a coordenadora educacional, as crianças tinham interesse em aprender sobre a cultura indígena e ajudavam a nova colega. Em uma aula recente de Português, Hakani se ofereceu para ler o enunciado da questão e, ao terminar, a turma a aplaudiu. “Os alunos a apóiam sempre. Eu não esperava por isso”, diz a professora Deise.

Hakani demonstra a melhora em pequenas atitudes do cotidiano. Quando chegou a Brasília, não andava e não falava. Hoje em dia, joga xadrez, conta algumas experiências de sua vida para os colegas, está aprendendo a falar inglês e pratica esportes.

A índia é a primeira criança em processo de inclusão no Leonardo da Vinci. O tratamento é específico conforme a necessidade e, no caso de Hakani, a turma do 2º ano A foi o diferencial. Hakani mora em Brasília há sete anos e não pretende voltar ao Amazonas. A criança surpreende com a sua história de vida e recuperação. “Vai chegar uma hora em que a diferença com as pessoas da mesma idade vai ser menor ainda. Ela tem muito potencial”, diz a coordenadora Esther Miryan.

Atini pela vida

Atini significa “voz”, em suruuarrá, e é justamente o que a ONG de Edson e Márcia pretende fazer: ouvir as mães e crianças que convivem com o infanticídio. O povo suruuarrá é composto de aproximadamente 140 índios e teve, ao longo dos últimos 20 anos, 28 assassinatos. “Tentávamos não interferir na cultura local, mas chegou uma hora em que não agüentamos mais”, conta Márcia. Em setembro de 2006, os Suzuki oficializaram a ONG e passaram a proteger os direitos das crianças indígenas. “Se existe sofrimento, provavelmente algum direito humano está sendo violado”, diz Márcia.

O artigo cinco da Constituição Federal é uma Cláusula Pétrea e prevê que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. “Pela Constituição, o direito à vida está à cima de qualquer outro, inclusive à cultura”, justifica Márcia. O deputado Henrique Afonso (PT/AC) apóia a ONG e levou a Câmara o Projeto de Lei 1.057 – Lei Muwadji – a fim de combater a prática do infanticídio e proteger os direitos fundamentais de crianças indígenas.

A ONG ajuda diretamente, além da suruuarrá, outras seis tribos. Segundo a missionária, as atitudes do grupo voluntário são mais valiosas que os discursos. “Após três anos de proteção de Hakani, Bibi percebeu nossa atitude e nos trouxe a irmã para salvarmos a vida dela”, conta. A partir de então, várias índias recorriam aos voluntários quando sabiam que os filhos seriam sacrificados. “A pressão da comunidade é forte sobre as mães”, acrescenta Márcia.

A favor da cultura

Os Suzuki ficaram com a guarda provisória de Hakani por cinco anos, até a Fundação Nacional do Índio (Funai) conceder a adoção. O juiz alegava não haver a certidão de óbito da mãe indígena. “Mas não havia nem ao menos certidão de nascimento”, diz Márcia. Segundo a Lei Federal 6.015, de registros públicos, os índios, enquanto não integrados à sociedade, não são obrigados a ter certidão de nascimento.

O professor da Universidade de Brasília (UnB), antropólogo e sociólogo Antônio Testa, defende que “perante a Constituição, os índios não são considerados cidadãos e, por isso, não devemos obrigá-los a seguir as nossas leis”. Os povos indígenas não integrados à civilização – de aldeias semi-isoladas - ficam sujeitos ao Estatuto do Índio. Para ser considerado cidadão, deve requisitar ao Estado e seguir alguns requisitos, como: idade mínima de 21 anos, conhecimento de língua portuguesa e razoável compreensão dos costumes da vida na cidade.

“A tendência é a extinção do infanticídio, pois cada vez mais as aldeias entram em contato com a civilização através de ONGs e da mídia” explica Testa. “Na cidade, as pessoas praticam pedofilia e abandonam crianças constantemente. Somos tão ou mais cruéis que eles”, acrescenta.

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Militar brasileiro fala de sua passagem pelo Haiti


NaPrática - jornal laboratório do IESB
Foto: Elio Sales

O Exército brasileiro lidera a Missão de Paz no país. Em entrevista ao NaPrática, o coronel Henrique Afonso Pedrosa conta o que viu nos seis meses em que esteve lá

Os acontecimentos que ocorreram desde a independência do Haiti, na metade do século 19, marcam a realidade do país hoje. Há aproximadamente 200 anos, a região era a colônia francesa mais próspera da América devido à exportação de café, açúcar e cacau. Após várias disputas pelo poder, 26 anos de ditadura e muito sangue derramado, o país se encontra em ruínas, em meio ao lixo, ao comércio informal e à pobreza. As ruas e prédios estão destruídos, a Polícia Nacional do Haiti não tem estrutura, e a riqueza do país está concentrada apenas em 0,01% da população.

Atualmente, Cité Soleil é o bairro mais perigoso da cidade e é onde o 7º contingente brasileiro da missão de paz no Haiti atuou diariamente. O coronel do Exército e chefe de redação do Centro de Comunicação Social do Exército (Cecomsex), Henrique Afonso Pedrosa, teve a oportunidade de passar seis meses no país e garante que o trabalho foi compensador. Ele conta que a economia e a política ficaram destroçadas pelas confusões internas do país e que é possível perceber as conseqüências históricas na realidade da população.

Em fevereiro de 2004, confrontos armados eclodiram na cidade de Gonaives, e se espalharam pelo território. O presidente da época, Jean-Bertrand Aristide, requisitou com urgência o apoio da Organização das Nações Unidas. Cerca de 1600 soldados de vários países ajudariam na segurança, na transição política e na reconstrução da infra-estrutura do Haiti. No mesmo ano, o Conselho de Segurança das Nações Unidas estabeleceu a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah).

O Exército brasileiro lidera a missão de paz com o apoio de outros 15 países. Todo ano, o Brasil prepara dois contingentes com militares do Exército e do corpo de fuzileiros navais da Marinha para trabalhar em prol da população e do Estado haitiano. Longe das famílias, participando de patrulhas e operações de risco, ajudam pessoas sem perspectivas. O coronel Pedrosa conta ao NaPrática como foram os seis meses que passou no Haiti.

Na Prática - O que o senhor esperava do Haiti?
Coronel Pedrosa - O Exército prepara seus oficiais muito bem para a missão para não irmos com uma imagem distorcida do que é o país. Ao longo dos seis meses anteriores à missão vimos palestras e participamos de treinamentos. Não houve choque de adaptação. Outro motivo são os componentes culturais do haitiano, muito parecidos com os nossos. É um povo alegre e muito acessível.

NP - Por que, em sua opinião, a tropa brasileira é tão bem recebida no Haiti?
CP - Foi um trabalho construído desde o primeiro contingente. A força militar que o haitiano mais gosta é a brasileira. Conquistamos um respeito muito grande não só da população, mas com as outras tropas que também fazem parte da missão. Conseguimos fazer a diferença em certas áreas que outros países já haviam tentado e não conseguiram.

NP - Qual o índice de mortes da tropa brasileira no Haiti?
CP - Quando eu estava lá ocorreram mortes de soldados dos contingentes de outros países. O contingente brasileiro só teve uma baixa, com o soldado que pisou no fio de alta tensão e morreu. Os outros casos foram somente acidentes.

NP - Como funciona a assistência médica para os soldados?
CP - Utilizamos um hospital que é comandado pelas tropas argentinas e temos apoio na República Dominicana.

NP - Qual a responsabilidade de lidar com a imprensa em uma situação como essa?
CP - Eu lidava diretamente com a imprensa local e internacional e não tive problema algum. Quando tinha operação, eu convidava alguns jornalistas para acompanhar o Exército. Eles adoravam participar e relatavam com fidelidade o que ocorria. Nós não temos nada a esconder, tanto é que todas as reportagens a respeito foram positivas.

NP - Qual é a maior diferença entre o Brasil e o Haiti?
CP - O cotidiano e as condições ambientais são bem diferentes. Ao mesmo tempo em que eles são muito alegres, são muito violentos. A forma como tratam a mulher e a criança é violenta. Até o jeito de falar é um pouco agressivo. Encontramos muito lixo na rua. Grande parte da população de Porto Príncipe somente tem acesso à luz durante poucas horas do dia.

NP - E na questão da violência urbana?
CP - A ausência de um Estado forte no Haiti. Não é o caso do Brasil, que tem leis consolidadas e um aparato jurídico forte. Lá, as leis estão no papel, mas não funcionam, pois o Estado ainda não tem condições de colocar em prática. A ONU está ajudando muito no aspecto policial e jurídico, pois o Haiti tem que caminhar pelas próprias pernas.

NP - Por que o Exército não poderia no Brasil fazer o trabalho que faz no Haiti?
CP - A situação é diferente. No Haiti, existe a Polícia Nacional do Haiti (PNH), mas ela ainda está sendo formada, em uma situação precária, devido à ausência de Estado. Não pretendemos manter a MINUSTAH o tempo todo, então a polícia terá que aprender a comandar a situação. O Brasil tem instituições em que a função principal é a segurança pública. Aqui já temos meios constitucionais para resolvermos o problema, independente de força armada. Tem que ser criada uma solução prática diretamente na instituição que não agüenta a demanda da sociedade. Nesse ponto, podemos dar uma força, mas o problema não será resolvido permanentemente se o foco for a nossa atuação e não a atuação da polícia responsável.

NP - O inimigo de vocês na guerra civil do Haiti era bem definido?
CP - Não era exatamente uma guerra civil. No Haiti, de repente o Estado deixou de existir e grupos tomaram o controle sobre determinadas áreas e fizeram a lei do lugar. Eu não senti um punho político desses grupos. Os líderes tiveram acesso às armas e impuseram àquela população o controle diário. Aos poucos passaram a sobreviver de seqüestros, assaltos e outros ilícitos.

NP - Como é a educação no país?
CP - A população sempre pede duas coisas: educação e emprego. O batalhão brasileiro, a partir do 2º contingente, ocupou a área de uma universidade que estava abandonada e, no meu contingente, nós devolvemos as instalações ao governo para que a universidade possa voltar a funcionar. É uma melhora considerável. As escolas são precárias e a maioria é particular. A mensalidade é irrisória, pois a população não tem condições de manter esse luxo. As crianças se arrumam muito e adoram freqüentar as aulas.

NP - Qual o traço cultural característico do haitiano?
CP - A pobreza e a cor da população. É uma população de cor negra, quase na sua totalidade. Muito difícil você encontrar uma pessoa branca na rua. É quase um pedaço da África na América. Aqui no Brasil e até mesmo na República Dominicana, você ainda vê uma diferença da cor da pele. Isso não acontece lá.

NP - Qual foi a sensação na hora de vir embora?
CP - Você sente falta do seu país e dá alegria em você voltar pra casa. Estava com saudades da minha mulher e dos meus filhos. Passei seis meses sem encontrá-los. Dá uma satisfação enorme de ter concluído a missão e de ter feito algo por outro povo que estava precisando de ajuda. Sensação de dever cumprido. Voltei bem.

NP - Como está a situação hoje?
CP - Hoje em dia já podemos dizer que a área é segura. Quando chegamos em dezembro, passávamos e éramos bombardeados. Andávamos com carro blindado e hoje já andamos de carro aberto e a população reconhece o nosso trabalho. A economia informal ainda é grande no Haiti, as ruas estão sempre cheias de gente vendendo especiarias. A prioridade deve ser dar oportunidades à população.